Um texto sobre A Arte da Crítica

A primeira leitura de um livro, qualquer livro, gera expectativa. Mesmo quando se conhece o autor. Mesmo quando se lê o autor há muito tempo. Pois pode-se, sempre, indagar sobre o que seu novo livro acrescentaria a respeito de seu estilo, seus métodos, suas escolhas, orientação de pensamento, balizas nas quais se apoia para argumentar, emitir juízos etc. De modo que, de um autor amplamente conhecido, a leitura – e em decorrência a expectativa que a antecipa – pode se confinar à certificação do já sabido; ou seja, que o livro não exibe senão mais do mesmo; ou, de outro modo, pode trazer novidades, surpreender, revelar aspectos até então desconhecidos. Desnecessário: a expectativa ganha contornos outros para um leitor que ignora ou pouco conhece o autor.

A arte da crítica – um crítico de cinema reflete sobre seu ofício (Selo Lumière da Editora Letramento, 213 págs.) é o mais recente livro de Luiz Zanin Oricchio. Conheço o autor há mais de trinta anos. Com o livro em mãos, a primeira coisa que me vem é sobre a expectativa que A arte da crítica me geraria. Devo ponderar, contudo – por isso o futuro de pretérito –, que essa expectativa é coberta por um quinhão de empostação retórica. Crítico de cinema de O Estadão desde o início dos anos de 1990, nos anos recentes com a ascensão de novos meios de escrita além do jornal impresso, Zanin se fez notar com a criação de um blog. Nele, de modo solto e sem compromissos da imprensa impressa, alinhavou algumas ideias sobre… “a arte da crítica”. Vale dizer, pois: boa parte de A arte da críticame era conhecida antes de uma seleta do blog assumir a forma livro. Então, indagaria um leitor, ou o próprio Zanin: “Qual o sentido de sua afirmação inicial sobre expectativa?”

A leitura por meio da World Wide Web (www) é uma das coisas mais cômodas e casuais do mundo da cultura que o engenho humano inventou e pode propiciar.

Nota 1. O texto à mão na hora e circunstância mais inaudita possível;

Nota 2. A leitura rápida com atenção circunstancial, dispersiva, envolta em outros afazeres;

Nota 3. Para mim, ao menos, em razão do meio certo desestímulo para a releitura, mesmo quando eu arquivo um link para outro momento;

Nota 4. Com o livro impresso, para mim, ao menos, certa desconfiança de que o “já lido” está sendo lido pela… primeira vez.

Essa a sensação que tenho ao me deparar com A arte da crítica. Assim sendo, com sentido, ponho para mim a questão da expectativa suscitada em minha afirmação inicial. Além do já sabido sobre o autor, em que medida a leitura de seu livro poderia me surpreender em vez de revelar mais do mesmo? Ou, sendo assertivo: o que nele, de fato, de imediato, me surpreendeu?

Zanin é um leitor pantagruélico. Isso qualquer leitor ilustrado, com o mínimo de contato e atenção com seus escritos, logo percebe. Mas, o que me espantou com a leitura de A arte da crítica? Adendo: a leitura, qualquer leitura, tem infindos caminhos. Poderia, com esses infindos caminhos, lê-lo borgianamente – Borges, aliás, muito citado no livro por Zanin – e, ao fim, fazer uma lista exclusivamente dos livros SOBRE cinema citados em A arte da crítica que EU não li. Muitos eu já tinha referência. Mas, igualmente, muitos me foram apresentados pela primeira vez por Luiz Zanin. Creio, especulo, que mesmo um leitor tão voraz quanto o Zanin – e “modestamente” eu me incluiria entre eles – poderia fazer, assim como eu, uma lista enorme de livros citados no livro de Zanin e que não foram lidos por esse leitor hipotético.

Essa lista borgiana, a não ser para um leitor com um tipo específico de excentricidade, seria impossível com a leitura do blog. Nas formas blog e livro impresso, portanto, diferentes “sendeiros que se bifurcam” nos “labirintos” da leitura. Fosse, além disso, “profundo” nonsense, A arte da crítica não privaria um leitor ilustrado de uma lista com referências que ele precisa ler e que dão sentido ao que Zanin pensa sobre cinema. O livro exibe, então, lacunas que um leitor ávido por leitura deve preencher. Há, assim, muitos valores submersos na leitura de um livro. Um valor submerso em A arte da crítica é aquele que instiga o leitor a “ver” como a lista de livros lidos por Zanin – eventualmente não lidos por seus leitores – forma, dá sentido e expressa suas ideias sobre o mundo do cinema.

Tacitamente – não creio que Zanin ao se sentar para escrever tenha esse intento metodicamente estabelecido… –, A arte da crítica é um convite para que o leitor o leia tendo no horizonte o enorme cabedal de leituras de seu autor. Não há sentença, ou linha argumentativa desenvolvida, que não remeta um leitor atento a uma referência explicitamente referenciada. Portanto, cabe a esse leitor, se tomado por curiosidade, ir além do livro.

Satisfeita a expectativa sobre o que A arte da crítica acrescentaria ao já sabido, reterei alguns pontos que me despertam atenção nesse livro. O primeiro, para mim bastante saliente, diz respeito à forma da escrita da crítica cinematográfica. Zanin é ácido em relação à escrita empolada, à erudição ornamental, à pernosticidade acadêmica, ao exibicionismo empostado tanto quanto vazio de conteúdo. Defende, assim, uma escrita que não exige do leitor decodificações como se este estivesse frente a um hieróglifo. Mais, toma como modelo a norte-americana Pauline Kael. Fosse manifestamente egocêntrico (para alguns sobranceiro, para outros presunçoso…) – e eu entenderia isso como exercício de retórica –, Zanin se autocitaria. Nenhum modelo melhor que ele mesmo para aplicar o que ele próprio sustenta sobre a forma da escrita cinematográfica. Com seu exemplo, o leitor, que casualmente não tenha a atenção para seu método de escrita, poderia julgar como ele se afastaria, digamos, da erudição ornamental.

Há, contudo, um dado e uma fronteira nas escolhas de Zanin em A arte da críticaque merecem realce.

O dado. Zanin tem formação em psicologia e filosofia. É com essa bagagem que ele entra no jornalismo cultural e, cinéfilo, se destaca na crítica cinematográfica. A escrita jornalística num jornal com a circulação de O Estadãoexige um alto padrão, mas com o leitor por alvo: a imprensa joga o jogo do mercado e um leitor ilustrado, para o jornal, também é um consumidor. Esse alto padrão, pelas conveniências do jornalismo, incorpora “clichês”, tanto quanto refrata “vícios” acadêmicos (enquetes de mercado, suponho, assim revelam…). Zanin no Estadão tornou-se um crítico referencial porque escreve muito bem conforme exigências de um jornalismo de alto nível cultural.

E escrever bem, nesse sentido, é ter diante de si que sua escrita não enfadaria o amplo escopo de leitores com, digamos, “erudição ornamental”. Ocorre que justamente aqui a delicada fronteira. Quando a citação de um livro lido por Zanin amplia o horizonte de conhecimento de um leitor – confessei como me encantam seus interesses pantagruélicos por leituras – e quando essa mesma citação, para outro leitor, será recebida como “floreio ornamental”?

Não tenho dúvida de que Zanin, quando se senta para escrever, não tenha ciência dessa fronteira. Assim como tenho ciência de que qualquer escriba experiente tem ciência dela e que, por narcisismo, acabe escorregando e pisando do “lado de lá”. Óbvio, esse não é o caso de quem sequer desconfia da existência da fronteira.

Essa fronteira é melindrosa porque envolve uma escolha na qual, ao fim e ao cabo, não se consegue escapar à condescendência. Ora, implicitamente exige-se um leitor que “compreender-me-ia sem… esforço de decodificação”. E isso põe embaixo do tapete um problema com fundo paradoxal. Na “simplicidade” da escrita supor um leitor aquém do que lhe possa ser oferecido, para escapar à pecha de pedante. A se negar essa condição (e aqui o risco do pedantismo: a aplicação do modus ponens…) restaria ter presente uma multiplicidade de opções, caso a caso, e saber para quem a erudição é ou não ornamental. Isso para milhares de leitores, stricto sensu, é impossível saber. Apenas o bom senso responderia quando um crítico estaria sendo ou não pedante.

A forma da escrita crítica cinematográfica, assim “interpreto”, direta ou indiretamente dá o tom dos textos de A arte da crítica. Dela derivam pontos que exigiriam uma, digamos, exegese sobre escolhas, decisões, posicionamentos de Luiz Zanin. A mais crucial e para a qual abre-se um infindo debate é sobre a… interpretação. Há muitos outros pontos localizados no livro que instigam interrogação: O que é um spoiler? Para que serve a crítica? Como separar hoje crítico de influencer? Quem assiste a um filme impulsionado pela crítica? Por que o curta não recebe a atenção do longa? Há também, devo dizer com respeito à organização do livro, textos sobre música (não necessariamente sobre a música no cinema) que talvez destoem do foco do livro, ao fim e ao cabo, do “ofício” a que se vê enredado o crítico de cinema (Zanin confessa que antes do cinema sua paixão era a música; quem sabe em outro livro, com a música em vez de crítica de cinema…). Fico, entretanto, por aqui e fecho com uma citação de Montaigne: “Existe maior dificuldade em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas”.

Humberto Silva é professor de história do cinema na FAAP, autor, entre outros, de Glauber Rocha – cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016) e membro da Abraccine.

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