A arte da crítica (37): As reações à crítica. Criticar o filme do seu país

A arte da crítica (37): As reações à crítica. Criticar o filme do seu país

Pode-se supor, com algum grau de segurança, que as relações entre artistas e críticos sempre foram um tanto conflituosas.

Nem poderia ser diferente já que, em alguma medida, ao comentar alguma obra de arte, podemos ser analíticos, “neutros”, ou o que quisermos, mas seremos sempre um tanto valorativos.

Nessa valoração da obra, podemos (e devemos) ser técnicos. Mas, de novo, jamais conseguiremos abolir certa subjetividade de apreciação. Aliás, mesmo que pudéssemos, esta seria, no limite, indesejável. Uma crítica pretensamente isenta de subjetividade a meu ver não tem grande serventia. Sempre é bom lembrar Oscar Wilde: toda crítica é uma espécie de autobiografia. Quer dizer, colocamos muito de nós na obra (porque ela é aberta) e é exatamente por isso que ela nos sensibiliza. Ou, pelo contrário, quando com ela não nos identificamos, em alguma medida nos deixa indiferentes.

Essa relação entre críticos e cineastas (para ficar no cinema) é tão complicada que vários filmes já foram feitos a respeito. Para citar alguns exemplos – o de Maria de Medeiros (Je t’aime moi non plus: artistas e críticos, 2003), o de Kléber Mendonça Filho (Crítico, 2008), documentários sobre críticos conhecidos, como Roger Ebert (Life itself -a Vida de Roger Ebert, 2014) Pauline Kael (O que Ela Disse – as Críticas de Pauline Kael, 2014) e Carlos Boyero (O Crítico, 2022). Em abordagens diferentes, citam as fricções entre críticos e realizadores, sobretudo quando os textos não são favoráveis às obras.

Há outro aspecto. A distância pessoal e geográfica entre crítico e criticado é inversamente proporcional à intensidade da reação. Se eu criticar um filme, digamos, da Nova Zelândia, dificilmente saberia da reação do diretor, caso ele lesse o artigo, o que é bastante improvável. Já quando critico um filme brasileiro, a coisa é diferente. O mesmo se passa em cada país em particular.

Durante muitos anos cobri como jornalista o Festival de Veneza, e pude observar o crônico antagonismo entre a crítica italiana e os diretores do país. Havia uma queixa recorrente dos cineastas – a comparação que os críticos faziam entre o passado glorioso do cinema italiano e um presente não tão brilhante. Era o peso da herança de um país que havia tido grandes diretores em série como Roberto Rossellini, Vittorio De Sica, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Pier Paolo Pasolini, entre outros. Em patamar tão alto, deixava-se em segundo plano diretores como Mario Monicelli, Dino Risi, Sergio Leone.

São perrengues pontuais. Todo crítico já os teve e terá enquanto permanecer na atividade. Lembro de um, sem citar nomes, que foi muito pedagógico para mim. Fiz uma série de considerações sobre um determinado filme, tratando com todo o respeito aquilo que considerava suas limitações. Dias depois recebi uma mensagem do cineasta, dizendo-se magoado com o meu texto.

Tempos depois, fui a um debate em que tinha como companheiro de mesa Jean-Claude Bernardet. Ele me censurou, a respeito dessa mesma crítica, dizendo que eu pegara muito leve e que o excesso de luvas de pelica debilitara o texto. Eu disse que não fora a impressão do cineasta, e que este ficara ofendido com o texto, para minha surpresa.

Jean-Claude me respondeu no ato: “Claro, é uma questão narcísica”.

Verdade. Cutucados em nosso narcisismo, reagimos de forma inconsciente, instintiva, por assim dizer, pouco reflexiva e, de modo geral, desproporcionada. Qualquer reparo que se faça a uma obra (ou a um texto crítico) pode suscitar essa reação de quem se sente ferido em sua imagem narcísica. Quanto a isso, todos estamos na mesma condição, embora em grau diferentes. Há quem reaja com fairplay a uma crítica. Outros perdem a cabeça, literalmente. Há casos registrados de agressões físicas.

Um cineasta famoso um dia me disse: “Meus filmes são como meus filhos”. Na hora não respondi, mas pensei comigo. “Seus filhos não são objetos de crítica. Pertencem à esfera privada. Ninguém tem o direito de criticá-los. Já uma obra, exposta ao espaço público, é suscetível de ser analisada e avaliada.”

No entanto, existe algo a mais nesse tipo de relação.

Há uma passagem interessante em Trajetória Crítica, livro de Jean-Claude Bernardet que tive a felicidade de prefaciar. Bernardet conta que, jovem crítico, completo desconhecido, ganhou notoriedade por causa de um texto sobre A Doce Vida, de Federico Fellini.

No entanto, apesar do sucesso, isso o deixou insatisfeito. Apesar da repercussão do texto, que lhe abriu várias portas, faltava-lhe o principal: “Fellini não havia lido a minha crítica”. Portanto, por melhor que fosse o texto, não atingira um destinatário especial: justamente o criador da obra. E esse diálogo ativo entre crítico e criador era uma das ambições do jovem crítico Jean-Claude.

A trajetória posterior do crítico foi pautada por essa vivência íntima com o próprio material de seu estudo. Tanto assim que, autor de obras fundamentais como Brasil em Tempo de Cinema e Cineastas e Imagens do Povo, em paralelo fez-se roteirista (é dele, por exemplo, o extraordinário roteiro de O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person) e ator.

Por meio do seu pensamento, o crítico (ou pelo menos um crítico do tipo de Bernardet) deseja intervir no próprio processo de construção de uma cinematografia. Por isso, assuntos de política cultural não lhe são alheios. A obra não nasce num espaço social vazio. Essa obra é a sua matéria-prima de reflexão. Não lhe basta ter acesso ao melhor da cinematografia mundial, mas precisa se preocupar, em especial, com a produção cinematográfica do seu próprio país, do ambiente em que enraíza sua cultura. Não lhe é indiferente que tal filme tenha se produzido sob uma ditadura, como aconteceu com algumas obras-primas brasileiras como Terra em Transe, de Glauber Rocha, São Bernardo, de Leon Hirszman, ou Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade. Ou que tenham sido feitas em condições de penúria por falta de política cultural na área, como Alma Corsária, de Carlos Reichenbach, ou Um Céu de Estrelas, de Tata Amaral. Um modo de produção não determina uma obra numa relação de causa e efeito. Mas esta não é alheia àquele. Tudo é contexto, embora a obra deva ser considerada em si mesma quando se torna objeto crítico.

O fato de levarmos em conta e até privilegiamos o cinema feito em nosso país, não significa negar a universalidade da arte e a do cinema, em particular. É claro que um filme de Bergman ou de Eisenstein ou de Welles ou Chaplin nos tocam e nos dizem respeito na medida em que partilhamos – artistas e nós – o espaço comum da humanidade. Mas também é certo que não podemos ignorar a produção de nossa própria cultura, sem a qual nos tornamos apenas críticos pela metade, por assim dizer. Daí a frase, tão incompreendida, de Paulo Emílio Salles Gomes, para quem o pior filme brasileiro nos diz mais respeito que o melhor filme estrangeiro. Não conseguimos escapar da nossa cultura, por mais que tentemos.

Isso é particularmente importante num país como o Brasil, em que a produção cinematográfica se faz de maneira descontínua, sujeita a crises frequentes e interrupções traumáticas. Foi assim, por exemplo, com a mais grave delas no passado recente, a do desmanche do setor promovido pelo governo Collor. Durante alguns anos não houve produção cinematográfica significativa. O pequeno número de lançamentos não proporcionava massa crítica suficiente para qualquer reflexão de conjunto.

Era como se o crítico tivesse ficado órfão – do seu próprio cinema. Na verdade, órfão de si mesmo. E, dessa forma, caminhasse para a irrelevância.

A cultura e o cinema foram atacados sob o governo neofascista de Jair Bolsonaro em ações tão ou mais destrutivas que sob Fernando Collor. No entanto, se nos anos 1990 a produção praticamente se paralisou, agora, ainda que muito prejudicada, sustentou-se ativa e viva. A memória da resistência e a força inercial das instituições criadas foram suficientes para navegar em tempos tão difíceis. E sobreviver, ainda que com escoriações.

Essa ideia de que, em certa medida, crítico e realizador podem ser parceiros, merece alguma discussão. Há cineastas que mantêm uma atitude de hostilidade permanente em relação à crítica. “Eu os odeio!”, diz, com todas as letras, Pedro Almodóvar no filme de Maria de Medeiros.

Outros mantêm a ideia de colaboração. Ruy Guerra considera que tanto críticos como diretores pertencem ao mesmo campo, o do cinema. Embora com funções diferentes, têm muito em comum. Em Crítico, de Kleber Mendonça, o documentarista João Moreira Salles sustenta que existe uma relação entre a qualidade da crítica e a qualidade do cinema do país em que o crítico vive (Ivonete Pinto em Crítica e Curadoria no Cinema).

Em 2006, o Festival de Brasília organizou um seminário sobre a crítica. Convidado, o jornalista Eugênio Bucci formulou essa ideia, que já havia expressado em artigo de jornal. Diz que um crítico pode influenciar um cineasta brasileiro, mas o americano pouco se lixa para o que um brasileiro possa escrever sobre seu trabalho.

Um crítico, presente ao debate, escreveu em seu blog que a afirmação era estranha, já que na própria plateia do debate não havia nenhum realizador. Uma conversa entre críticos não havia despertado qualquer interesse nos diretores presentes ao festival. Ou melhor, havia um, que tomou a palavra e pediu aos críticos uma avaliação sobre o seu filme. Chegou até a perguntar, sem qualquer traço de ironia, quanto custava uma crítica de cinema. Respondendo à pergunta, disse que dependia. Críticas favoráveis eram mais caras.

Brincadeira à parte, esse pertencimento de cineastas e críticos ao mesmo campo, ainda que com atribuições diferentes, tem suas raízes bem plantadas e remonta à figura tutelar da crítica cinematográfica brasileira, Paulo Emilio Sales Gomes (1916-1977). Numa visão simplista, Paulo Emilio é tido como protótipo de crítico nacionalista, sendo este um adjetivo de conotação negativa num país dominado por recorrente completo de vira-latas, na expressão de Nelson Rodrigues.

Atribuem a Paulo Emilio uma frase que nunca pronunciou, segundo a qual o pior filme brasileiro seria melhor que o melhor filme estrangeiro. Ora, o intelectual cosmopolita, que viveu duas longas temporadas em Paris, tendo escrito em francês um livro pioneiro na França sobre o cineasta Jean Vigo e seu pai, Miguel Almereyda, jamais diria, e menos escreveria, tamanha bobagem.

Ele diz, sim, que qualquer filme brasileiro diz mais a nosso respeito do que o melhor filme estrangeiro, o que é uma postura de combate, militante, engajada na causa do cinema brasileiro, pelo direito de o Brasil ter uma cinematografia. Essa convicção abrangeria tanto filmes de comprovada qualidade estética, como os de duvidosa, e Paulo Emilio escreveu sobre a necessidade de refletirmos também sobre o “filme ruim”. Em sua coluna no Jornal da Tarde, chegou a escrever sobre Os Mansos, filme de episódios eróticos lançado em 1972 na era de ouro da pornochanchada.

Nesse ponto, Paulo Emílio dialoga com Antonio Candido Mello e Souza, seu amigo e parceiro na revista Clima, no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo e na USP. Em Formação da Literatura Brasileira, Candido diz que se não pensássemos sobre a nossa literatura, ninguém o faria por nós. Essa literatura, “galho secundário da literatura portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”, era fruto temporão do nosso desejo de ter uma literatura. E assim era, mudando o que deve ser mudado, em relação à arte mais recente do cinema. Também fruto do nosso desejo, se dela não nos ocuparmos, ninguém o fará por nós.

Um comentário em “A arte da crítica (37): As reações à crítica. Criticar o filme do seu país

  1. Caro amigo li com interesse o seu artigo sobre a anamorfose no quadro Os Embaixadores. Vi também que você se refere a Lacan e o mesmo tem sobre a anamorfose de um objeto em diagonal no quadro que a mim me parece um pão francês, mas Lacan considera esse enrugamento, como um ersatz do penis. Faltou você colocar se me permite que esse grande pão que Hans Holbein colocou na frente do quadro e que na verdade olhando do canto abaixado o observador vê uma caveira, é também além de um enígma a assinatura do pintor cujo nome é Hans “Caveira”. Obrigado

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