Nunca entendi direito por que Pauline Kael, crítica por 30 anos da New Yorker, e muito influente por aqui nos anos 60 e 70, tinha caído de moda no Brasil. Parece que hoje ninguém a lê.
Pois eu leio, pelo menos de vez em quando. Folheando seu livro I Lost It at the Movies, a propósito de Sindicato de Ladrões, acho que descobri o motivo de Pauline ter sido esquecida: ela escreve de maneira clara, e isso caiu de moda.
Hoje parece de bom tom escrever críticas de cinema de um jeito retorcido, com frases que têm de ser lidas e relidas até que façam algum sentido. No mais das vezes, por mais que você torture o texto, não consegue extrair dele sentido algum. É uma profissão de fé na obscuridade, um terrível vício acadêmico que tem contaminado a crítica de maneira alarmante.
Abaixo, um exemplo do texto de Pauline Kael, que escrevia como gente. E para gente.
“A tentativa de criar um herói para a audiência de massa é um desafio e uma grande armadilha. Sindicato de Ladrões enfrenta o desafio, mas cai na armadilha. A criação de um simples herói é um problema que não ocorre com frequência em filmes europeus, nos quais o esforço é despendido em criar personagens que nos toquem mais por sua humanidade – sua fraqueza, sua sabedoria, sua complexidade – do que por suas dimensões heróicas. Nossos filmes (i.e., norte-americanos), entretanto, negam a fraqueza humana e as complexidades sobre as quais os europeus tanto insistem. É como se nos recusássemos a aceitar a condição humana: não queremos ver-nos em trapaceiros, em seres traídos e covardes. Queremos heróis, e Hollywood os produz com um estalar de dedos.”
Quer dizer: Kael discute a complexidade (ou não) dos personagens e o faz de maneira simples. A complexidade está no material abordado e não na análise em si.
Isso não significa esquivar-se das dificuldades. Há, de fato, filmes difíceis, complicados, que exigem alto grau de abstração. Há temas que se bifurcam, exigem caminhos alternativos, que nem sempre coincidem entre si. Talvez não se possa exigir facilidade na prosa de Kant, por exemplo. Ou na de Hegel. Ou em O Ano Passado em Marienbad, ou Glissements Progressifs du Désir. Há quem enfrentá-los, quando os lemos ou vemos.
Mas falo de outra coisa – da obscuridade buscada, pomposa, inchada, que parece ser de predileção de alguns escritores que, assim fazendo, tentam se passar por “profundos” quando são apenas retóricos e, no limite, ridículos. Não existe nada pior do que um texto pretensioso que, quando espremido, não rende uma gota de conteúdo.
A maior parte da produção audiovisual, inclusive a grande maioria dos filmes chamados “de arte” é de uma simplicidade franciscana. Não acredito que seja função do crítico complicar o que é simples. Acho que, pelo contrário, deve tentar simplificar o complexo, sem barateá-lo ou aviltá-lo. Exige trabalho, embora não pareça.
Leio a Pauline Kael. Tenho admiração pela prodigiosa memória cinematográfica dela. A opção de texto claro é uma opção. Com talento, ela escreve bem e a clareza é uma virtude. Nem todos que “optam” pela clareza têm talento pra tanto. Optasse pela escrita rebuscada teria o mesmo talento? Serve Daney, ao contrário de Pauline Kael, fez opção pelo texto “obscuro”. Poucos tem talento pra tanto. Enfim escolhas na escrita e opções para o leitor.
É isso, Humberto. Estratégias de texto. A não ser quando é falsamente complicado para parecer “erudito”. Ai é fraude. Sobre essa questão da complexidade e da simplicidade, escrevi outro post neste mesmo site: https://luizzanin.wordpress.com/2019/11/17/a-arte-da-critica-16-o-simples-e-o-complexo/