A arte da crítica (32): para quem escrevemos?

A pergunta do título tem uma resposta pronta: não sabemos. Pelo menos não sabemos exatamente. Cada texto é uma espécie de mensagem numa garrafa, que nunca sabemos se vai chegar a alguém, se esse alguém vai abrir o recipiente, ler a mensagem e compreendê-la da maneira como a escrevemos.

Dito isso, podemos fazer alguma ideia sobre o nosso hipotético destinatário de nossas humildes e mal traçadas linhas. Por exemplo, se escrevemos numa revista especializada, dirigimo-nos a nossos colegas e à comunidade cinematográfica mais que ao público em geral. Num veículo de comunicação, como um jornal, o público é mais amplo e variado. Lê o especialista. Mas lê, sobretudo, a pessoa que se interessa pelo tema, pelo cinema em geral, ou aquele que busca uma indicação para o fim de semana.

Digo isso a partir de uma recente e pequena experiência de internet, no Facebook, para ser preciso. Vi outro dia um filme que me pareceu particularmente insuportável: Tudo no Mesmo Lugar ao Mesmo Tempo. Coloquei um post em que dizia ter me preparado para o pior, mas ninguém se prepara de todo para um filme como este.

A pequena ironia teve alguma repercussão, dentro da minha bolha. A maioria das pessoas estava de acordo comigo.

Uma ou outra havia gostado. Uma amiga opinou que se tratava de uma questão geracional. Quem estava abaixo dos 30 anos em geral gostava. Os mais velhos não suportavam. Essa amiga – a crítica Flávia Guerra – dizia que o fato de os diretores, os Daniels, terem um passado de direção de videoclipes também explicava a linguagem frenética do filme, que o tornava particularmente cansativo, em particular para gente passada dos 30 anos. Em suma, seria um filme para millennials.

Tudo isso me lembrou de um caso antigo de mais de 30 anos. Estreava em São Paulo um filme do polonês Krzysztof Kieslowski (1941-1996), Não Matarás. Fui vê-lo numa cabine (sessão para a imprensa) e tinha de escrever a crítica logo depois, para o jornal do dia seguinte. Não sei por quê, era uma sessão só para mim, no Bexiga, numa sala inabitual para cabines.

Assisti ao filme, quase em estado de transe. Saí chocado do cinema. Havia estacionado meu carro ali perto e precisava ir para o jornal. Mas não me sentia em condições de dirigir. Entrei num boteco, bebi uma água mineral e dei um tempo para a emoção baixar.

No jornal, uma página inteira, a capa do caderno, me esperava (bons tempos do jornalismo cultural). Escrevi o texto ainda sob o impacto emocional causado pela obra e a recomendei vivamente aos leitores. Dei cotação máxima. Obra-prima. Até hoje penso o mesmo do filme. Jamais vi libelo tão contundente contra a pena de morte, porque é disso que se trata.

Tempos depois de publicado o texto, recebi uma carta – e-mail ainda era coisa de ficção científica. Era um assinante do jornal, jurista, e se dirigia a mim em termos corteses. Dizia mais ou menos o seguinte: “Depois de ler a sua crítica, saimos, minha esposa e eu, jantamos e, em seguida, fomos ver o filme por você indicado com tanta ênfase. Pois bem, o senhor nos proporcionou uma das piores noites de nossas vidas”.

O texto seguia, criticando da fotografia esverdeada (“como bílis”) às cenas “gratuitas” de violência, do minucioso assassinato do taxista à execução do criminoso vista em seus pormenores.

A minha mensagem na garrafa havia chegado ao destinatário, mas lida de maneira inversa à minha intenção. O que para o crítico era a força do filme, com o impacto emocional que causava, para o espectador era um exagero intolerável, uma violência explícita que chegava ao obsceno.

Quem tinha razão? O crítico ou o espectador? Pergunta mal colocada, a meu ver.

Eu havia feito o meu trabalho, destacando a força da obra, a importância da discussão que levanta, a coragem da abordagem, a fatura minuciosa da sua forma.

Ele havia visto a maneira desagradável com que Kieslowski retrata a violência de Estado para criticá-la. E, provavelmente, tinha visto também a sua própria profissão de jurista colocada na berlinda por essa poderosa reflexão sobre a violência de Estado contraposta à violência individual.

Quem tinha razão? Os dois, provavelmente.

(Work in progress. Continua)

Leia a série completa de A arte da crítica

Ou na página do Facebook: A arte da crítica

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s