A arte da crítica (26): a obra já está contida no material bruto?

Em uma live recente, Eduardo Escorel disse que não lhe agradava a ideia da montagem soberana. Como se o montador pudesse fazer qualquer obra a partir do material recebido.

Observação: esta é uma das ideias mais arraigadas em parte do meio cinematográfico (e crítico): a de que um bom montador é capaz de receber um material frágil e dele tirar um filme pelo menos digno. “O filme foi salvo na montagem”, como se diz.

Melhor seria dizer que um filme pode ser perdido na montagem, por inépcia ou interesses outros. Há casos clássicos, como o de Soberba (The Magnificent Ambersons), segundo longa de Orson Welles, arruinado para sempre pela edição imposta pelo estúdio enquanto o cineasta filmava no Brasil seu inconcluso It’s All True.

De qualquer forma, voltando a Escorel (montador de nada menos que Terra em Transe), ele prefere achar que a obra já está contida no material e cabe ao montador tirar de lá a melhor versão possível. Cita Michelangelo: “O Moisés já estava contido no mármore. O escultor tirou o excesso”.

Há outras frases atribuídas a Michelangelo e que vão na mesma direção:

“Em cada bloco de mármore vejo uma estátua; vejo-a tão claramente como se estivesse na minha frente, moldada e perfeita na pose e no efeito. Tenho apenas de desbastar as paredes brutas que aprisionam a adorável aparição para revelá-la a outros olhos como os meus já a vêem.”

Ou ainda, quando foi perguntado sobre como fizera escultura de Davi:

“Foi fácil, fiquei um bom tempo olhando para o mármore até nele enxergar o Davi. Então peguei o martelo e o cinzel, e tirei tudo que não era Davi”.

Lembremos que outro gênio, Leonardo Da Vinci, fazia uma distinção entre a pintura e a escultura. Uma funciona “per via de porre” (pôr, colocar) e outra, “per via de levare” (tirar).

A pintura trabalha per via de porre, pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali. Já a escultura, ao contrário, funciona per via de levare, pois retira da pedra tudo que encobre a superfície da estátua nela contida”.

São metáforas artísticas poderosas. Freud as utilizou ao fazer a distinção entre as técnicas psicoterapêuticas que existiam antes dele e a psicanálise.

“…A técnica de sugestão opera per via de porre; não se importa com a origem, a força e o sentido dos sintomas patológicos, mas antes deposita algo – a sugestão – que ela espera ser forte o bastante para impedir a profusão da ideia patogênica. A Terapia Analítica, em contrapartida, não pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes tirar, trazer para fora, e para esse fim preocupa-se com a gênese dos sintomas patológicos e com a trama psíquica da idéia patogênica, cuja eliminação é sua meta” (Sobre a Psicoterapia, 1905).

Talvez tenhamos essa impressão sobretudo diante de obras-primas. Nelas, temos um vislumbre da perfeição – ainda que saibamos que esta não existe, talvez seja apenas um horizonte a ser perseguido. Mas, fica a impressão: tal obra – no nosso caso, tal filme – parece não tolerar um fotograma a mais nem a menos. Qualquer acréscimo, ou falta, comprometeria a obra irremediavelmente.

Trata-se apenas de uma impressão, parece. Embora passe essa ideia de que não poderia ter sido feita de outra forma, sabemos que a obra perfeita, a obra-prima, o capolavoro, o chef-d’oeuvre, se trata apenas de uma ideia platônica. Uma forma absoluta que já estaria dada de antemão, mesmo antes de ser construída. O artista apenas chega a essa obra que é maior que ele. Seria somente um intermediário, cuja função é tirar do vazio essa obra antes inefável, porém já dada.

Aliás, essa expressão acima citada em vários idiomas – a obra-prima, o capolavoro, o chef-d’ouvre – designa, no fundo, apenas isso, o grande artista que, em determinado trabalho, chegou ao seu ápice, seu ponto máximo, seu cume. De onde, é claro, só poderá decair, descer de forma suave para a planície dos comuns.

De qualquer forma, o caráter coletivo da obra cinematográfica a torna particularmente refratária a essa ideia platônica da obra perfeita. Muitas mãos, e mentes, se movem na confecção de um filme, ainda que (mesmo nos casos “autorais”) uma delas seja a responsável última pela forma final. O diretor, o autor, cuja soberania foi colocada no ponto máximo pela politique des auteurs, mas cujo prestígio, desde então, só fez decair.

Assim, mesmo que optemos por considerar a “autoralidade” o ponto máximo do exercício artístico no cinema, estamos prontos para admitir que os outros profissionais intervenham, de forma mais ou menos intensa, no produto final. A não ser que o autor seja também o escritor, o fotógrafo, o montador, o diretor de arte e por que não?, o ator que interpreta o personagem principal em seu filme.

Orson Welles talvez tenha sido o que mais se aproximou dessa autoria total. Mas, mesmo em Kane, dividiu a autoria do roteiro com Herman Mankiewicz, parceria que está na origem de toda a polêmica levantada por Pauline Kael e constitui um debate clássico (e interminável) da história da crítica. Orson interpretou Kane, contracenando com Joseph Cotten e outros. Bernard Hermann fez a trilha; Gregg Toland fotografou; Robert Wise montou. E etc.

Se o autor é soberano para a “politique”, muitos foram os que consideraram o caráter coletivo da feitura de um filme como a realidade inextricável da arte do cinema. Inclusive com vantagens. Se não me engano, foi Kracauer quem viu nesse status coletivo a capacidade de o cinema expressar, talvez melhor que as outras artes, o Zeitgeist, o espírito de um tempo. A soma das sensibilidades envolvidas na feitura de um filme seria mais capaz de perceber o espírito da época do que apenas uma delas, a do diretor. Mais uma vez, se não me engano, falava de como a nuvem pesada do nazismo formando-se sobre a sociedade alemã pôde ser melhor captada pelo expressionismo alemão porque o cinema funcionava como uma coletividade.

Reconhecemos, desde então, no filme que bate na tela, nada além de uma possibilidade entre tantas que aquela forma poderia atingir. A melhor possibilidade, talvez, mas esta é apenas uma conjectura, uma vez que o material poderia ser montado de outra forma e, talvez, atingido um resultado diferente daquele que passamos a conhecer, reverenciar e ter por definitivo.

Quem lê poderá objetar que um indivíduo é bem capaz de captar esse clima de época à perfeição e expressá-lo de forma genial. Penso aqui em Kafka e concordo. Porém, por mais que a técnica cinematográfica tenha se simplificado pelas novas tecnologias, ainda assim seu caráter coletivo é notório. Basta permanecer na sala após o final e ver nos créditos as centenas de nomes das pessoas que trabalharam naquela obra.

Tudo é construção; tudo está por fazer.

(Work in progress. Continua)

Leia a série completa de A arte da crítica

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